segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Diário de dois amantes





Eram papéis velhos, já amarelados e de bordas gastas pelo tempo. Pareciam uma carta que nunca chegou ao seu destino. Escritos com caneta bico de pena, tinham um suave cheiro de rosas quase secretado pelo mofo. Ele estava há muitas horas arrumando o porão da nova casa, que comprara com tanto sacrifício, e descobriu naquele baú velho uma distração enquanto descansava. Nada ali era seu, tudo pertencia ao antigo dono da casa. Um velho tachado de louco que falava de ressurreição e dizia controlar a vida. Se sabia acabou por esquecer, pois morreu de velhice sentado na cadeira de balanço. Cadeira essa onde Carlos estava sentado confortavelmente lendo a carta.

Era uma declaração de amor. Mas Carlos não acreditava no amor, ele que nunca havia sentido nada por ninguém e morava sozinho desde que se formara. A solidão era a vida dele e, pelo que diziam as cartas, do falecido também. Eis o que estava escrito:

Minha cara Luana,



Há muito tento escrever esta humilde carta, mas nunca tive coragem de fazê-lo. Até agora. Espero que não se aborreça com minhas palavras, mas quero que saiba o que estou sentido para que essas emoções não morram comigo. No dia em que te conheci percebi que estava só. Sim, a solidão sempre foi minha companheira, mas a partir daquele dia passou a morar comigo. Sem você as rosas do jardim soam como falsas e o canto dos pássaros apenas um barulho irritante. O pôr do sol apenas anuncia a chegada da escuridão. Me sinto como a lama que escorre pela rua em dia de chuva. As secas folhas que caem das árvores no outono.

Não foi culpa sua, nem culpa minha, de eu ter me apaixonado. Mas foi culpa minha desse amor ter me feito sofrer. Nunca tive coragem de me declarar e, fazendo isso agora, espero que me entenda e acabe com esse pesar.

Carlos parou por aí. Aquilo era extremamente ultrapassado, “careta”. Não era de se estranhar, pois se o velho estivesse ainda vivo teria mais de cem anos. E bote cem anos nisso. “O que mais haveria no velho baú”? - pensou antes de revirá-lo. Lá dentro haviam coisas muito estranhas, o velho devia ser louco mesmo. Um manto negro com um pentagrama desenhado, uma adaga enfeitada, incenso de rosas - certamente de onde veio o cheiro da carta -, um livro empoeirado e uma caixinha de metal que fazia muito barulho quando manuseada. O quê haveria dentro dela? Ao abrir ele se surpreendeu com a besteira que achara. Um monte de objetos sem nexo, pareciam o bolso de uma criança. Uma pena, uma pequena pedra, uma vela vermelha usada até a metade e um vidrinho com uma água já esverdeada dentro. Devia ser água do mar, pois estava a tanto tempo parada que o sal se acumulou no fundo do vidro. “Talvez virasse uma praia dentro de alguns milênios se eu não tivesse mexido” - zombou. Suspirou de tédio e acabou tossindo com a poeira que invadiu-lhe os pulmões. O dia havia sido cansativo e ele pensou em tomar um banho e dormir vendo televisão. Mas havia se esquecido de que a TV, assim como o resto da mudança, só chegaria em alguns dias. Porém ainda havia aquele livro velho e empoeirado, se não fosse tão “açucarado” quanto a carta serviria como distração.

Depois do banho refrescante fez um café com leite e subiu para seu quarto. À luz do abajur, abriu o livro. Tinha uma capa de couro e um marcador de fita vermelha. As páginas eram desgastadas e amareladas nas bordas, além de possuírem um furo fino no canto, certamente o caminho de uma traça centenária. Foi logo para a última página, pois costumava sempre ler o final do livro para ver se agradava. Não era um método comum mas fazia parte da personalidade dele. Estava escrito, em letras mortas:

E ela virá para buscar o que me pertence e levar até mim. Em sono pleno estarei e ela caminhará pela eternidade até me encontrar. Juntos seremos felizes, pois assim eu desejo e assim será.

Ele parecia determinado em suas palavras, mas não o homem romântico e sofredor que passava ser na carta. Carlos concluiu, então, que aquilo foi escrito depois da carta. Mas o quê levaria o velho a mudar tanto? Foi por esse motivo que ele começou a ler pela primeira página, e foram poucos os livros que tiveram essa honra. Era uma espécie de diário onde o velho, que chamava-se Alfredo, passava seus conhecimentos e desejos. De início parecia interessante, ele falava sobre bruxaria e energias da natureza. Apresar de Carlos não acreditar nesse tipo de coisa, tomou o diário como uma obra de ficção. Depois de ler por alguns minutos acabou caindo no sono.

Acordou na manhã que se seguiu e foi trabalhar. Nem se lembrou do livro mas sentiu uma sensação de que algo lhe faltava. Pensamento que ele logo preencheu com outro: “Deve ser a fome”. Depois do almoço - uma quentinha que comprou no caminho - subiu até seu quarto e encontrou o livro largado no chão ao lado da cama. Como tinha a tarde livre, resolveu continuar e saber o que se sucedeu ao velho Alfredo. Foi quando tocou a campainha, era Rosana. Não, não era sua amante, mulher da sua vida ou namorada. Era a faxineira que por tantos anos trabalhou para a mãe de Carlos e agora estava sendo “emprestada” à ele. “Comece pelo porão”, disse ele depois de mostrar-lhe a casa, “Estarei em meu quarto se precisar de alguma coisa”. Voltou a ler o diário depois passar alguns minutos para reencontrar a página de onde parou.

As energias do Cosmo estão em harmonia com toda matéria, mas apenas os seres viventes têm o poder de controlá-la à seu favor. Através do pensamento, portado apenas pela humanidade, pode-se evocar ou expulsar tais energias, negativas ou positivas…

Carlos parou de ler, já entediado. Parecia mais com as conversas de sua tia Magnólia, uma gorda confeiteira que misturava tudo quanto era crença. Vivia arranjando simpatias para “espantar energias negativas”. Ou dizia para a mãe dele, sua irmã, chamar um pai de santo para “fazer uns trabalhos na casa”, que segundo ela, estava “muito carregada”. Carlos pulou aquela parte chata e repulsiva - por lembrar de sua doce tia - e virou umas dez páginas até achar algo que lhe chamou a atenção. Era um bilhete escrito em uma tinta e papel diferentes, com uma caligrafia delicada e extensa. Vinha de Luana, à quem Alfredo nutria grande paixão, e parecia marcar um encontro, no bosque. Que bosque? Não havia sequer um jardim decente naquele bairro! Aí Carlos lembrou que a carta tinha quase a idade de sua avó.

PAFT! Foi o som ouvido por Carlos que tirara sua atenção do bilhete. Algo caíra no porão e Rosana clamou por ajuda. Ao descer deparou-se com a mulher fazendo massagem no próprio pé e um quadro caído ao chão. Depois de passar gelo para diminuir o inchaço, Rosana explicou que tentava transportar o quadro quando ele caiu em seu pé. Não era um quadro grande, mas a moldura pesava muito. Era, na verdade, um retrato pintado de uma linda mulher. Talvez fosse Luana. Não haviam palavras para descrever com perfeição seu rosto rosado, seu olhar cheio de ternura e seus lisos cabelos loiros caídos nos ombros. Já foi ele arrumando um pretexto para pendurar o quadro na sala: “Pelo menos preenche essa parede vazia” ou “O artista soube usar bem os efeitos de luz e sombra”. Se deixou enfeitiçar por ela. O que nenhuma “mulher de verdade” tinha conseguido fazer.

Aumentou sua curiosidade por saber como era o amor entre Alfredo e Luana. Tudo estava escrito no diário. Às vezes eles passeavam pelo bosque, faziam piqueniques, viajavam. Mas Alfredo não estava satisfeito com o fato da amada não acreditar em magia. Um dia, segundo o diário, ele pregou-lhe um susto com um feitiço simples. Feitiço que estava descrito no diário e Alfredo usou para fazer um gato ficar louco por alguns instantes. Desde então Luana passou a desconfiar de que fosse realmente possível que seu amor, sua alma, fosse um bruxo. Carlos procurou em seu mundo algo que procurasse explicar o que lia: “Das duas, uma: Ou ele tinha uma imaginação muito fértil, ou usava drogas…”. Ele não estava interessado nos truques e baboseiras mágicas de Alfredo, queria sim conhecer Luana. Parecia que ela fazia parte de seu mundo, agora. Que era uma amiga de longo tempo. Às vezes ficava contemplando seu retrato na hora do jantar, naquela sala vazia.

Até que, finalmente, Carlos descobriu o que procurava - que, aliás, havia esquecido que procurava -, o motivo que o levou a ler o diário. Por que Alfredo tornou-se o homem capaz de escrever: “pois assim eu desejo e assim será”. Foi a morte de Luana. Ao ler aquilo Carlos deixou cair o livro em suas mãos, ficou chocado com o fato daquela mulher tão jovem ter morrido daquela forma. Enquanto cavalgava no bosque o cavalo se assustou, ela caiu e quebrou o pescoço. Uma coisa dessas é comum, uma morte tão banal, e por isso, uma fatalidade. Alfredo tornou-se um homem depressivo, alcoólatra. Em muitas páginas não escrevia nada com nada. Até que, uns dois meses depois da data da morte, ele descreveu algo que chamou de “salvação divina”. Era um livro chamado Necronomicon: O Livro dos Mortos. Segundo o diário, Alfredo passou a estudar o livro dia e noite, integralmente. Anotava suas experiências e projetos. Tratava da necromancia, o estudo da morte e dos mortos, como um assunto qualquer. Tinha a esperança de um dia ressuscitar Luana. Carlos não entendia quase nada do que estava escrito no diário, mas era suficiente para saber que o velho realmente era um louco. De certo devido ao trauma que sofrera. Pulando até o final, Carlos descobriu que Alfredo tinha um plano. Já haviam se passado duas décadas desde a morte de Luana e o velho entendeu que ela nunca voltaria à ele, mas ele podia ir até ela. Era um ritual perigoso e podia até levá-lo ao inferno, mas sua alma não tinha mais nada a perder. Deixou uma breve mensagem de despedida para o mundo, dizendo que os dois renasceriam e continuariam a viver seu amor, que acabava como Carlos já sabia.

Quando se deu conta já era tarde da noite e tinha de acordar cedo no dia seguinte para trabalhar. Ler o diário durante aquela semana o levou à um passado remoto, o fez conhecer Luana e viajar nos delírios de Alfredo. Nada passou de um entretenimento, a não ser uma coisa: Luana. Talvez tenha se apaixonado por ela pela maneira em como Alfredo a descrevia. Não sabia. Procuraria esquecer tudo aquilo aos poucos e tirar o quadro dela da sala. Guardou o diário de volta no baú do porão, junto com as outras coisas. Aliás, Carlos já sabia o que significavam. Os objetos dentro da caixa metálica representavam os quatro elementos, o incenso de rosa era o incenso do amor, o punhal e o manto eram usados para fazer rituais. Percebeu que pelo menos havia aprendido alguma coisa, mesmo que inútil para ele.

Foi trabalhar indisposto na manhã seguinte, sonhara com Luana. Logo ele, de coração tão fechado e descrente na paixão, se via às voltas desse tipo de coisa. No trabalho comentou sobre isso com um amigo, que se interessou no diário. Ia emprestar para ele, já que não fazia uso. Voltou para casa e foi direto para a cozinha preparar um café. Na sala, Rosana limpava os móveis com o aspirador e nem ouvira um “boa tarde”. Ao descer ao porão para pegar o diário não encontrou o baú, assim como outros livros velhos que estavam entocados em uma caixa de papelão. Dirigiu-se à Rosana: “Onde está o baú velho que havia no porão?”. A mulher respondeu, com a maior cara lisa: “Ué, Carlinhos, já esqueceu?”. Esquecer do quê? Agora ele não estava entendendo mais nada. E Rosana continuou: “Uma mulher chegou aqui e disse que tinha falado com você. Daí ela pegou as coisas e foi embora…”. Carlos perguntou, já ficando irritado: “Mas que mulher, se eu não permiti a ninguém entrar na MINHA casa e mexer nas MINHAS coisas?!”. Rosana parou, desligou o aspirador e apontou para o retrato de Luana: “A mulher aí do quadro”, disse ela, esperando a reação do patrão para certificar-se de que não havia feito nada de errado. Mas a reação de Carlos foi diferente do normal. Terminou de beber o café olhando para o quadro. Isso soava familiar ao sonho que tivera. Rosana votou a ligar o barulhento aspirador e não tirou a concentração dele. Mais uma vez Carlos apreciava o retrato, a beleza de Luana. Talvez não tirasse aquele quadro de lá.

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